A quebra automática da coisa julgada tributáriaPublicado em 03/05/2023 Após os esclarecimentos para os associados na 31ª edição do Café com Direito, a assessoria jurídica do Sindiex preparou um breve resumo com comentários sobre os principais assuntos tratados no encontro. Confira no artigo da advogada Mônica Pimenta Júdice. 1. Coisa Julgada – noção. O art. 502 do Código de Processo Civil de 2015 pretendeu definir o conceito de coisa julgada: "denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. "Autoridade” é uma força de caráter obrigatório e definitivo que atua sobre a decisão – que possuirá como referenciais a imutabilidade e a inalterabilidade, sendo prometida o fim da eternidade. A imutabilidade da coisa julgada está assegurada no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal (CF), atribuindo estabilidade e segurança às relações jurídicas. Note-se que a coisa julgada não torna indiscutíveis os efeitos da decisão – sobre o assunto BARBOSA MOREIRA, em Coisa Julgada e Declaração, Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977c, e em Eficácia da Sentença e Autoridade da Coisa Julgada, Saraiva, 1984a. A imutabilidade da coisa julgada, de longa data, suscetível de crítica por parte da doutrina, é a regra, e em caráter excepcional, pode ser revista. 2. Limites Objetivos e Subjetivos da Coisa Julgada O art. 503 do CPC/15 regula os limites objetivos da coisa julgada: "a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal”. Trata-se de definir, portanto, o que se torna indiscutível pela coisa julgada. A coisa julgada torna indiscutível a norma jurídica individualizada, construída para a solução do caso concreto. Terá "força de lei”, a impositividade da norma concreta. O art. 506 regula os limites subjetivos da coisa julgada: "a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Neste aspecto, a coisa julgada pode operar-se inter partes (somente se vinculam as partes), ultra partes (se estende aos credores solidários) ou erga omnes (atinge a todos). 3. Limites Temporais da Coisa Julgada O art. 505 do CPC/15 determina que: "nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação do estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; e II – nos demais casos prescritos em lei”. Aqui, pretende-se responder "até quando” a solução se torna indiscutível. 3.1 Coisa Julgada e as Relações Jurídicas de Trato Continuado Considera-se a "relação jurídica instantânea” a relação jurídica decorrente de fato gerador que se esgota imediatamente, num momento determinado, sem continuidade no tempo, ou que, embora resulte de fato temporalmente desdobrado, só atrai a incidência da norma quando estiver inteiramente formado” (ZAVASKI, Teori. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, São Paulo: RT, 2012, p. 99), sendo exemplo a relação jurídica de indenização por danos materiais causados em razão de ato ilícito. Considera-se a "relação jurídica permanente” aquela que "nasce de um suporte de incidência consistente em fato ou situação que se prolonga no tempo” (ZAVASKI, p. 100), sendo exemplos, as relações previdenciárias, alimentícias, de família e de locação. Há ainda a "relação jurídica sucessiva: nascidas de fatos geradores instantâneos que, todavia, se repetem no tempo de maneira uniforme e continuada” (ZAVASKI, p. 100), exemplos básicos, se encontram no direito tributário, além da CSLL, o Imposto de Renda, ICMS, ISS, IPI, PIS/COFINS, contribuições para a seguridade social, dentre outros. A sentença que regula relações jurídicas permanentes e sucessivas contém a cláusula rebus sic stantibus (art. 505, CPC): havendo modificação superveniente no estado de fato ou de direito, é possível o magistrado rever o quanto se decidiu. Em alguns casos automaticamente, em outros casos, mediante ação de revisão ou de modificação. Modificando-se os fatos, tem-se a possibilidade de uma nova ação: "A modificabilidade da decisão é decorrente da peculiar relação jurídica de direito material que ela certificou; é o direito material certificado que traz consigo a marca da modificabilidade, já que seus pressupostos são suscetíveis a variação no tempo (PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 147). Desta feita, sentença que reconheça inexistente relação jurídica tributária sucessiva é eficaz para o futuro até sobrevir mudança da regra de incidência do tributo. 4. A Decisão do Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se manifestar sobre a questão: Uma decisão de constitucionalidade, firmada em ação direta ou em repercussão geral, constitui "modificação no estado de direito" capaz de "paralisar” a eficácia temporal de coisa julgada incidente sobre decisão que afirmou a inconstitucionalidade da lei? Nessa linha, complementa-se indagando: É todo e qualquer precedente vinculante do Supremo Tribunal, firmado em recurso extraordinário poderia paralisar a eficácia de coisa julgada? A decisão que declarou a constitucionalidade da Contribuição Social sobre o Lucro, na ADI 15-2-DF, faria então cessar a eficácia temporal da coisa julgada individual? Em resposta, a Corte Suprema confirmou, por unanimidade, que as decisões do STF em ação declaratória de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade ou em sede de repercussão geral, teria sim o condão de cessar automaticamente os efeitos da coisa julgada na relação de trato continuado, respeitados eventuais princípios tributários. Vejamos abaixo as teses firmadas pelo Supremo Tribunal Federal, senão vejamos: 1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo. No tocante à modulação dos efeitos, por 6x5 votos, os Ministros da Suprema Corte decidiram por não modular este entendimento, o que significa que, desde a decisão da ação declaratória de inconstitucionalidade, na ADI 15-2-DF, de caráter vinculante, erga omnes, ponderada improcedente, o tributo em questão poderia ser exigido. 5. Contexto da CSLL É interessante compreender o contexto da decisão sobre a Contribuição sobre o Lucro Líquido para que o alcance e a importância deste precedente fique claro. O debate inicialmente se estendeu desde o ano de 1989 a 1992, quando, apesar de diversas decisões declarando a ilegalidade da cobrança, em análise de um recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da cobrança. EMENTA: I. ADIn: legitimidade ativa: "entidade de classe de âmbito nacional" (art. 103, IX, CF): compreensão da "associação de associações" de classe. Ao julgar, a ADIn 3153-AgR, 12.08.04, Pertence, Inf STF 356, o plenário do Supremo Tribunal abandonou o entendimento que excluía as entidades de classe de segundo grau - as chamadas "associações de associações" - do rol dos legitimados à ação direta. II. ADIn: pertinência temática. Presença da relação de pertinência temática, pois o pagamento da contribuição criada pela norma impugnada incide sobre as empresas cujos interesses, a teor do seu ato constitutivo, a requerente se destina a defender. III. ADIn: não conhecimento quanto ao parâmetro do art. 150, § 1º, da Constituição, ante a alteração superveniente do dispositivo ditada pela EC 42/03. IV. ADIn: L. 7.689/88, que instituiu contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas, resultante da transformação em lei da Medida Provisória 22, de 1988. 1. Não conhecimento, quanto ao art. 8º, dada a invalidade do dispositivo, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal, em processo de controle difuso (RE 146.733), e cujos efeitos foram suspensos pelo Senado Federal, por meio da Resolução 11/1995. 2. Procedência da arguição de inconstitucionalidade do artigo 9º, por incompatibilidade com os artigos 195 da Constituição e 56, do ADCT/88, que, não obstante já declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 150.764, 16.12.92, M. Aurélio (DJ 2.4.93), teve o processo de suspensão do dispositivo arquivado, no Senado Federal, que, assim, se negou a emprestar efeitos erga omnes à decisão proferida na via difusa do controle de normas. 3. Improcedência das alegações de inconstitucionalidade formal e material do restante da mesma lei, que foram rebatidas, à exaustão, pelo Supremo Tribunal, nos julgamentos dos RREE 146.733 e 150.764, ambos recebidos pela alínea b do permissivo constitucional, que devolve ao STF o conhecimento de toda a questão da constitucionalidade da lei. (ADI 15, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2007, DJe-092 DIVULG 30-08-2007 PUBLIC 31-08-2007 DJ 31-08-2007 PP-00028 EMENT VOL-02287-01 PP-00001 RDDT n. 146, 2007, p. 216-217) Observe-se que, já neste instante poderia ter a Fazenda Nacional ingressado com a Ação Rescisória com o objetivo de desconstituir as coisas julgadas obtidas em sentido contrário. Não obstante, manteve-se inerte quanto a ação desconstitutiva da coisa julgada individual, porém ativa quando as autuações fiscais (Parecer nº 1.297/94). Desta feita, considerou-se como o marco da constitucionalidade da lei o julgamento de improcedência da ADIN 15-2, referendando a questão analisada em recurso especial. Ato contínuo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em algumas passagens, analisou a legalidade da cobrança à luz da decisão do STF e concluiu que o contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade da cobrança não seria afetado, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO – CSLL. COISA JULGADA. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 7.689/88 E DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. SÚMULA 239/STF. ALCANCE. OFENSA AOS ARTS. 467 E 471, CAPUT, DO CPC CARACTERIZADA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL CONFIGURADA. PRECEDENTES DA PRIMEIRA SEÇÃO DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. Discute-se a possibilidade de cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro – CSLL do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. 2. O Supremo Tribunal Federal, reafirmando entendimento já adotado em processo de controle difuso, e encerrando uma discussão conduzida ao Poder Judiciário há longa data, manifestou-se, ao julgar ação direta de inconstitucionalidade, pela adequação da Lei 7.689/88, que instituiu a CSLL, ao texto constitucional, à exceção do disposto no art 8º, por ofensa ao princípio da irretroatividade das leis, e no art. 9º, em razão da incompatibilidade com os arts. 195 da Constituição Federal e 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT (ADI 15/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJ 31/8/07). 3. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade. 4. Declarada a inexistência de relação jurídico-tributária entre o contribuinte e o fisco, mediante declaração de inconstitucionalidade da Lei 7.689/88, que instituiu a CSLL, afasta-se a possibilidade de sua cobrança com base nesse diploma legal, ainda não revogado ou modificado em sua essência. 5. "Afirmada a inconstitucionalidade material da cobrança da CSLL, não tem aplicação o enunciado nº 239 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual a "Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores" (AgRg no AgRg nos EREsp 885.763/GO, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, Primeira Seção, DJ 24/2/10). Ainda, vale o destaque para o Parecer nº 492/2011 PGFN concluindo que o precedente do STF contrária as decisões individuais devem ser prospectivas. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal declara que decisão acerca da coisa julgada é matéria de índole infraconstitucional (ARE 901963 RG, TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 10/09/2015, DJe-183 DIVULG 15-09-2015 PUBLIC 16-09-2015). Ano seguinte entrava em vigor o novo Código de Processo Civil que pretendia a consolidação do modelo de precedentes no direito brasileiro. Diante desse cenário, o Supremo Tribunal Federal conheceu do impacto do precedente frente à coisa julgada, envolvendo dois Recursos Extraordinários - RE 955227 (Tema 885) e RE 949297 (Tema 881), de relatoria de Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Assim sendo, consagrou a tese de que as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interromperiam automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações. Na modulação, debatida por maioria de 6x5 votos, decidiram por não modular, o que significa que, desde a decisão da ação de inconstitucionalidade improcedente, o tributo poderia ser exigido. 6. Projetos de Lei O impacto do julgado é evidente quando se verifica uma reação legislativa, em que atualmente há alguns projetos de lei em torno da matéria decidida. O Projeto de Lei nº 512/2023, que institui o Programa Especial de Regularização Tributária do Fim da Eficácia da Coisa Julgada (PERT-Fim), prevê que "poderão aderir ao programa as pessoas físicas e jurídicas que façam prova de serem detentoras de ações judiciais transitadas em julgadas, às quais se apliquem as Teses 881 e 885, ainda que relativos a outros tributos”. Há ainda, iniciativas que visam à remissão dos fatos geradores da contribuição, transação excepcional, programa de anistia de multa e juros, ou mesmo, apresentam uma modulação de efeitos, ou, subordina a cessação da coisa julgada à necessária ação desconstitutiva de coisa julgada (ação rescisória) e, por fim, declara a nulidade de qualquer decisão que possibilita a relativização da coisa julgada. 7. Conclusões Iniciais Conforme se verifica, de fato, existe uma insegurança quanto aos rumos dessa decisão que ainda será objeto de embargos de declaração. Esta (insegurança), não é devido exclusivamente a decisão (retardatária) do Supremo, mas pela circunstância de não só existir um precedente no Superior Tribunal de Justiça garantindo ao contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado, declarando a inconstitucionalidade da cobrança, de que ele não seria afetado, bem como devido ao fato de que o próprio Supremo Tribunal Federal declara que decisão acerca da coisa julgada é matéria de índole infraconstitucional. Demais disso, a insegurança jurídica foi criada pela decisão, majoritária, pela não modulação da decisão, inclusive com efeitos automáticos de rescisão em matéria tributária ainda não revelada anteriormente. Sobre o tema, registre-se as considerações de Luiz Guilherme Marinoni : "Essa é a primeira vez que se afirma, na jurisdição brasileira, que uma decisão de constitucionalidade, proferida em uma ação de inconstitucionalidade, faz cessar a eficácia temporal da coisa julgada para todos sem nada declarar. E aí surge a questão, também mal-entendida, da modulação dos efeitos temporais da decisão. Certamente, não há como pensar na modulação da eficácia temporal da decisão proferida no ADI 15-2-DF, como se a modulação de efeitos pudesse operar em face de uma decisão tomada no passado, mas na modulação dos efeitos da decisão que está para ser publicada”. E finaliza afirmando em seguida que: "Na verdade, se as decisões do Judiciário transmitem confiança para os jurisdicionados, permitindo-lhes estabelecer seus projetos de vida e programas empresariais com base nos seus pronunciamentos, é certo que nenhum contribuinte poderia imaginar que, em uma decisão de constitucionalidade tomada em ADI, a declaração da cessação da eficácia temporal da coisa julgada é "invisível" ou "implícita", até porque que nenhuma decisão, na história da jurisprudência brasileira, assim já havia afirmado”. Desta feita, não se tratou de uma mera "aposta”. Quiçá, uma aposta dos contribuintes confiando no próprio modelo de precedentes implementado no sistema brasileiro. Neste contexto, pode-se concluir nesta altura que as empresas devem revisitar os temas ao longo da década e identificar dentro de cada processo se foram atingidas em algum momento posterior por uma decisão proferida em ação direta (ADI ou ADC) ou em repercussão geral. Sendo atingida, averiguar inserção do provisionamento no balanço do montante que foi aproveitado ainda que abarcada por decisão transitada em julgado. Lembrando, por fim que, ainda se aguarda os embargos de declaração, de modo que não estão descartadas possíveis reviravoltas especialmente quanto à modulação da decisão. Mônica Pimenta Júdice |
|||
| |||
| |||
Visitas: 274
Autor:
C
C2 Press